ANÁLISE - Narita Boy


A grande revolução digital trouxe mudanças profundas no mundo da arte e do entretenimento, com a democratização dos canais de distribuição a permitir que jogos feitos por pequenas equipas tenham paridade de acesso aos mercados com os grandes lançamentos AAA. Significa isto que inevitavelmente haverá mais lixo a circular mas, significa também que, aqueles que desejam realmente alcançar algum sucesso comercial têm de fazer por isso e encontrar formas de se destacar. Criou-se assim terreno fértil para a criatividade e o meio indie tornou-se numa fonte quase inesgotável de ideias em franco contraste com lançamentos onde as grandes corporação investem centenas de milhões de dólares - metade desse dinheiro na repetição ad nauseum de sequelas, a outra metade em campanhas de marketing para nos convencer que só eles existem.

Por outro lado, e como em tudo, a vasta cena indie também tende para uma certa cristalização de ideias, sendo que Narita Boy encaixa que nem uma luva dentro do género de jogo de plataformas retro-futurista, completamente embebido no espirito dos anos 80 e com uma boa banda sonora de synthwave a acompanhar. Algo transversal, que atualmente atinge todas as formas de expressão, da televisão à música, passando pelos videojogos, talvez fruto dos anos 80 serem o ano zero para quase tudo o que define a nossa era, mas que ameaça tornar um meio outrora fértil em algo previsível.



Felizmente Narita Boy não é apenas mais um no cesto de descontos da secção nostalgia. Do ponto de vista visual impressiona com a sua pixel art, onde tudo é individualmente trabalhado à mão desde os cenários e animações aos efeitos visuais. O mundo de Digital Kingdom estimula a imaginação com os seus templos, paisagens com ruinas colossais e pela forma como mistura a estética de fantasia com elementos retro-futuristas, construindo um mundo misterioso à espera de ser descoberto - por vezes a lembrar o trabalho de Eric Chahi em Another World.  Bom pormenor também em como transforma uma TV moderna de ecrã plano num clássico televisor CRT, dando a ilusão de ecrã curvo e apresentando artefactos visuais próprios dessa tecnologia agora arcaica.

Único ponto negativo a apontar é que para pessoas fotossensíveis este jogo pode causar alguns problemas. Particularmente no mundo vermelho, existe uma secção no topo de um comboio onde o movimento rápido horizontal junto com constantes flashes luminosos me causaram indisposição e alguma confusão mental. Foi a primeira vez que um jogo despoletou qualquer tipo de reação em mim relacionado com fotossensibilidade, por isso fica o alerta. 



Faz parte também do charme destes produtos criar a impressão de ser algo que poderia existir há 30 anos quando efetivamente teríamos que ter inúmeras NES ou Master Systems a trabalharem em paralelo para se conseguir reproduzir, tanto o que se vê no ecrã, como o que se ouve. E falo de ouvir porque obviamente também a música, apesar de predominantemente evocar os anos 80, em muito ultrapassa o que seria possível num sistema da altura. De uma forma geral é competente, veste bem o mundo com o sentimento correto de momento para momento e tem um papel fundamental na criação da atmosfera. As texturas usadas nos sintetizadores são excelentes mas tenho de dizer que a nível de composição é pouco interessante, demasiado genérica, sem grande inspiração. Está muito longe de ser má, mas também longe de ser tão criativa ou excêntrica em reinterpretar as suas influências como a parte gráfica é.

Mais uma valente piscadela de olho às suas raízes é a história. Rapaz que se vê transportado para o mundo do jogo que está a jogar e no qual se torna personagem principal e salvador desse universo, não sendo original, é um principio interessante. Principalmente porque em termos de narrativa expõe-nos em paralelo à historia do criador do jogo, que tem lugar no mundo real e foca-se em assuntos bem humanos, e a nossa própria aventura em Digital Kingdom, um local com uma iconografia rica, constantemente a explorar a interligação entre fantasia e o digital e onde, por exemplo, quando a falar sobre a raiz de uma árvore mística uma frase como esta faz sentido.



Infelizmente a escrita é demasiado autorreferencial podendo simultaneamente ser inacessível, para quem não tem qualquer conhecimento de programação e enfadonha, pela forma como se alonga desnecessariamente em lore dumps que deveriam ter lugar na forma de documentação de leitura opcional mas que, sendo obrigatória, falha em manter o jogador interessado na sua leitura. Curiosamente nos momentos em que acedemos às memórias do criador este problema desaparece e as longas paredes de texto que ocupam vários quadros de diálogo dão lugar a pequenos textos que eficientemente mantêm o jogador focado e emocionalmente investido. 




Saltando agora para a jogabilidade, o combate em particular está bem implementado e a sensação de impacto é bastante bem conseguida com excelente feedback visual. Não é o sistema mais profundo de sempre mas não precisa de o ser. Vamos adquirindo movimentos e poderes conforme exploramos Digital Kingdom, que são ferramentas essenciais para derrotar certos inimigos ou aceder novas zonas, e que garantem que o balanço da dificuldade penda para o nosso lado. O combate face a face vai-nos colocando perante novos e mais desafiantes inimigos, e em situações de combate progressivamente mais complexas, mas conforme vamos progredindo vamos também adquirindo poderes verdadeiramente devastadores que podem eliminar ecrãs cheios de inimigos de uma só vez, se usados no momento certo. Narita Boy atinge um equilíbrio quase perfeito entre fazer o jogador sentir-se "excessivamente" poderoso e manter um certo grau de desafio.  Já no que toca ao movimento é mais problemático. Existe uma constante falta de precisão que é transversal a todos os elementos e que, num jogo que se encontra no género de plataformas, é uma falha grave. Felizmente o desenho dos níveis parece levar isto em conta e é raro pedir do jogador mais do que os seus sistemas permitem, evitando assim frustrações desnecessárias. 

Mais complicado para alguns poderá ser ausência de mapa. Ao longo do jogo vamos recolhendo chaves para abrir novas secções, o que nos obriga a explorar e recordar pontos de referencia e portas por abrir. Pessoalmente acho que está bem desenhado o suficiente na forma como dá um espaço limitado ao jogador, garantindo assim um reduzido número de elementos a manter presentes a cada momento, nunca deixando o jogador verdadeiramente perdido e simultaneamente estimulando a necessidade de exploração. Irá depender de jogador para jogador mas, na minha opinião, é mais um testamento de boa execução do que uma falha no seu desenho.






Narita Boy é um titulo recomendado a todos os fãs do género ação/plataformas, com um nível de dificuldade que o torna acessível a qualquer pessoa com alguma experiência em videojogos. Faz um excelente trabalho na construção do seu mundo muito com base na arte criada à mão e uma banda sonora bem conseguida, ainda que simplesmente competente. Merecia sem dúvida mais algum polimento a nível da implementação do movimento mas o seu desenho sabe lidar bem com as suas limitações técnicas. Pessoas com epilepsia fotossensível devem encarar este jogo com algum cuidado ou simplesmente evitá-lo.   


7.5/10

Jogado na Xbox Series X
Disponível em PC, Switch, PS4, Xbox One






 

 





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